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O NASCIMENTO DA FLORESTA

Estamos em Setembro, dia 17 do ano de 1919 e acho que agora são mais ou menos quatro ou cinco da manhã. Desde o início era minha intenção documentar esta expedição em meu diário todas as noites, pouco antes de nos deitarmos, após armar acampamento, mas, só agora aqueles horríveis gritos e sons agourentos pararam e minha companheira de barraca adormeceu. Sinto pena dela, uma dama tão delicada entrando no Deserto Amazônico com dois estranhos, e ainda tendo de passar por semelhante provação demoníaca…







DIA I:

SONITUS DESERTI


Pousamos ontem, ao sul do Deserto Amazônico, mais precisamente, na fronteira entre a caatinga e a areia, onde alguns índios moribundos ainda habitam. É um lugar simplesmente surreal, parece haver uma constante luta entre a areia e uma terra escura em que cresce uma fraca vegetação rasteira fustigada pelo Sol. Me pus de pé bem na divisa do combate e olhei, primeiro para a direita, depois para a esquerda, e para qualquer lado que se olhe a divisão se estende por quilômetros. Minha equipe para esta expedição arqueológica fora financiada pela senhorita Aura, uma linda mulher britânica que entrou em contato diretamente com a curadoria do museu para nos financiar. E pensando bem, seu nome, Aura, me parece estranho, não sei se é mesmo um nome britânico, tem muito mais uma pronuncia românica ou até oriental; é, acho que deve ser isso mesmo, até seus olhos têm um certo ar asiático, eles são levemente puxados, muito embora, seu cabelo castanho claro, quase louro, também me lembre alguém de ascendência europeia. Realmente, é uma mulher incomum.

– Mas, qual será o objetivo da expedição?

Ora, não seria outro senão explorar a suposta Pirâmide de Ouro que muitos dizem se erguer imponente no centro do Deserto Amazônico!



Mesmo estando ainda apenas às portas e não dentro do deserto em si, o calor era avassalador. O simples ato de pisar na areia à frente era o suficiente para se afundar até as canelas, imagine então caminhar por três dias, deserto a dentro, tendo de se suportar os pés afundando neste inferno. Quisera eu ter camelos para nos levarem, mas não estamos no oriente. Havia também o vento cortante que castigava a pele. Mas nenhum destes fatores foi motivo, segundo o piloto – um homem velho e barrigudo que cheirava a álcool – de não nos deixar mais para dentro do deserto, em suas palavras:

– Esta área tem sido palco de coisas muito estranhas, todos os zepelins que o sobrevoam jamais retornam.

O velho também disse que há algum tipo de demônio sob as areias – pobre tolo supersticioso!
Mas, agora vejo que ele não está sozinho em sua loucura, nossa patrocinadora, a linda mulher de vermelho e cabelos claros que nos acompanha, trouxe consigo cinco empregados, todos de boa aparência e braços fortes para carregarem nossas malas, porém, quando se viram as portas do deserto, os incompetentes simplesmente levantaram acampamento, isto é, armaram NOSSAS barracas, quatro das cinco que trouxemos para acampar do lado de fora da pirâmide quando a encontrássemos, e, depois de fazê-lo, se recusaram a seguir viagem. Nunca fui suficientemente esclarecido no idioma inglês, fora o fato de que a senhorita Aura também se recusou a traduzir o que diziam os homens apavorados, mas pude entender claramente duas palavras:

– “She-devil”.

Repetidas várias e várias vezes freneticamente. Para nosso alívio, naquele momento, e também para nossa futura desgraça, um homem de aspecto carrancudo, vestindo botas de couro que lembravam as de um pistoleiro – e devia ser isso mesmo, já que era o segurança de minha empregadora – se prontificou a recolher alguns equipamentos e nos acompanhar mesmo assim. Visivelmente ele era diferente de qualquer homem que eu já tenha visto, parecia ainda mais rude que os piores condenados e, ao mesmo tempo, mais culto que a própria senhora. Quando perguntei, o rapaz me respondeu como se chamava, mas não pude compreender suas palavras, além do mais, sua expressão de poucos amigos me fez desistir de questioná-lo novamente, fiquei apenas com o que pude entender vagamente, algo como Aleguero…
Resolvi que não me dirigiria a ele outra vez até que ouvisse a senhorita chamá-lo pelo nome!
Deixamos quase todos os equipamentos para trás e, sob as estridentes, porém gentis, ordens de Aura, o outro e eu, nos ocupamos de apanhar tantos cantis de água quanto pudemos. Enquanto trabalhávamos, algo chamou minha atenção: não posso dizer com certeza, porém, creio que vi aquele homem apanhar, de dentro de uma das caixas, um objeto que possuía a silhueta de uma arma de fogo, será que ele espera realmente enfrentar algum demônio no coração do deserto, tal como afirmaram os supersticiosos?
Aura, por sua vez, era delicada demais para carregar qualquer coisa, então apenas apanhou um enorme chapéu que parecia mexicano, certamente obtido em suas viagens pelo mundo, lamentando o fato de que, se caminhasse por muito tempo no deserto, o Sol certamente tingiria seus cabelos de negro. Sequer andamos por muito tempo e logo se tornou impossível para a moça nos acompanhar. E ela não era a única a ter problemas, o vento nos atirava tão violentamente milhares de grãos de areia no rosto, de tal forma, que pareciam muito mais como pedradas, até nossas roupas já haviam se tornado pesadas devido ao acumulo do pó dourado. Também não víamos com clareza o Sol se escondendo as nossas costas, então, Aleguero e eu armamos uma das pequenas barracas com grande dificuldade devido ao forte vento; assim que pronta, Aura entrou e se abrigou, em seguida foi minha vez. Segurei a “porta” para que nosso companheiro entrasse também, a fim de fugir dos ventos, mas ele não o fez, ao contrário, sinalizou para que fechássemos a tenda e, resmungando algo quanto a condição financeira da moça ter haver com suas capacidades, se dirigiu para longe, se sentando no meio da areia em plena tempestade.
O barulho do vento era tamanho que, depois de ter se afastado, mesmo que quiséssemos fazê-lo, de modo algum se poderia ouvir o que estava dizendo lá fora. A senhorita Aura, com um rosto gentil e preocupado, questionava-se a todo momento se nosso companheiro estaria bem. Apenas uns poucos minutos haviam se passado, e a barraca já ameaçava sair voando, não importando se nós dois estávamos dentro dela ou não.
O vento custou a acalmar sua fúria, e quando todo o ar já estava quase parado, enquanto aquela delicada dama começava a adormecer, exausta da caminhada, subitamente a brisa voltou a se irritar, mas, desta vez foi bem diferente, pois, trouxe consigo sons muito incomuns; Aura e eu ficamos muito confusos, porque simplesmente ouvíamos passos nas dunas, como que, pisando pesadamente e se enterrando no meio da areia, a princípio julgamos ser nosso carregador, porém, a medida que o vento aumentava, mais e mais sons de passos apareciam em todas as direções, quantas pessoas caminhavam no deserto além de nós?
Será que aquele piloto bêbado estava certo em dizer que o local era assombrado, ou eram apenas os outros carregadores que mudaram de ideia e nos seguiram empurrados pelo remorso?

– Só podem ser eles mesmos! Aqueles inúteis certamente sentiram saudades de sua bela senhora; afinal, estou-lhes pagando um bom dinheiro!

Aura ficou indignada e com razão, quem abandonaria tão doce senhorita em meio a um lugar inóspito como este?
Ela já havia aberto metade do zíper da tenda quando se ergueu, junto aos sons de passos, o choro de uma mulher – um som simplesmente ensurdecedor, que me fazia tremer até a alma. Aura paralisou imediatamente, como se houvesse sido congelada no tempo, seus olhos fixos na escuridão que se via pela fresta do zíper. Mesmo igualmente apavorado, reuni alguma coragem e fechei novamente a barraca. Aura então, se encolheu, apertou os braços ao redor de si, como se tentasse se proteger dos lamentos, e estremeceu. Aqueles lamentos, hora agonizantes, hora debochados; eram esganiçados e ensurdecedores, como o ranger de unhas contra um vidro centenas de vezes amplificados, muito embora, também não parecesse com alguém arranhando um vidro extamente, não, eram vazios e sem vida. A cada onda de choro e zombaria, as vozes pareciam zombar de nossa carne e ossos.
A senhorita ficou tão transtornada que movia seus lábios freneticamente, tentando argumentar em silêncio com as vozes malditas, ou, quem sabe, estivesse orando. A cada vez que eu tentava, ainda que vagamente, espiar o que ocorria la fora, ela se agarrava a mim, pálida e trêmula, e me impedia de fazê-lo. Em todas as vezes que fiz menção de tentar averiguar novamente aquela situação demoníaca, Aura me impediu, talvez ela soubesse mais do que eu, que aquele era um terror grande demais para ser enfrentado, ou mesmo, compreendido. De modo que, permanecemos atormentados por toda uma noite de incertezas, sentindo que o tempo se arrastava segundo a segundo…


A fria madrugada custou a passar, envolvida em uma quietude que, pouco a pouco, nos devolvia a lucidez. Enfim sobrevieram o silêncio e o sono. À poucas horas do amanhecer apenas a senhorita Aura dorme, encolhida debaixo de seu cobertor e quebrando levemente o silêncio com seus suspiros enquanto escrevo estas palavras. Não a perturbarei, é melhor esperarmos até sermos atingidos pela segurança da luz do Sol antes de pensar em sair daqui e procurar pelo corpo de Aleguero…







DIA II:

OBSESSIO


É noite novamente. Gastamos quase toda a nossa água logo no primeiro dia da viagem devido ao calor, e ainda tivemos de cozinhar as batatas que trouxemos para o jantar. Ainda há mais um dia inteiro de caminhada a frente, penso que teremos de reutilizar a água das batatas amanhã… Ao menos, diferente de ontem, uma brisa muito agradável, ainda que terrivelmente gélida, sopra ao nosso redor. Não há nenhum som de passos, nenhum grito agourento, nenhum lamento ou escarnio, há apenas areia, pra onde quer que se olhe, há um oceano dourado. Quisera eu que fosse realmente ouro, se assim fosse, encheria meus bolsos dele e voltaria para casa imediatamente!
Estive me perguntando, durante todo o dia, se a noite passada realmente aconteceu ou se fora um efeito alucinógeno causado pela insolação que devo ter pegado neste deserto. E ainda mais estranho do que os lamentos que ouvimos à noite, foi a manhã: ambos, Aura e eu, acordamos depois de um sono leve e curto, ainda estávamos tremendo um pouco de espanto e, mesmo assim, buscamos abrir o zíper da barraca, acho que levamos mais de quinze minutos só pra abri-la completamente pois, a cada centímetro que o zíper avançava, nossas lembranças, somadas a uma imaginação sombria, nos traziam as figuras das almas zombeteiras invadindo a barraca. Mesmo depois de aberta, mais algum tempo se passou antes que tivéssemos coragem de dar uma breve espiada no que poderia haver do lado de fora, e para nossa imensa surpresa, não havia nada… apenas ele, Aleguero, que estava dormindo aos roncos sobre uma barraca embolada, como se fosse um travesseiro, e com suas roupas meio amassadas e cobertas com “toneladas” de areia; ao seu lado havia um punhado de gravetos parcialmente queimados, algo que simplesmente me deixou chocado e, certamente, a senhorita Aura também, afinal de contas, como em nome de Deus aquele homem conseguiu manter o fogo aceso com tamanha tempestade e tanta loucura do além dançando a nossa volta?

– Será que ele não ouvira o mesmo que nós?
– Será que imaginamos tudo aquilo?
– Será que EU imaginei ou sonhei com fantasmas, como se fosse uma criança com medo da primeira vez que dorme fora de casa?

Estas perguntas realmente me atormentaram por todo o dia. Mal havíamos dado um passo para fora da barraca e o homem acordou com um sobressalto, embora ainda tenha levado alguns minutos para se levantar e, ainda deitado, Aleguero contemplou Aura e eu saindo da barraca, quase agarrados um ao outro. Os olhares apreensivos da senhorita também não ajudaram em nada para contradizer os pensamentos perversos daquele homem que, logo exibiu um rosto simplesmente malicioso. Ele não disse nada a princípio, apenas nos fitou com interesse, e quando questionei se também havia ouvido os lamentos agourentos da noite, ele começou a rir descontroladamente antes de comentar:

– Lamentos agourentos, é assim que chamam?
– Achei que a madame estivesse gritando por “outra coisa”!

Em seguida, ele se apoiou nos cotovelos, se virou para Aura e falou em alto e bom som:

– Ei senhorita, ele é tão ruim assim a ponto de fazê-la chorar e lamentar?
– Por que não me deixa cuidar da dona esta noite?
– Garanto que a satisfarei muito melhor do que este doutor almofadinha aqui! Olhe pra ele, de terno em pleno Deserto Amazônico!

– Como ousa falar assim de uma dama tão digna – vociferei – ela jamais se sujeitaria a esse tipo de coisa!

Fiquei indignado com aquele bronco, me virei e me afastei imediatamente, fui em direção a senhorita Aura, como que para dizer que não desse ouvidos a aquele homem, mas, ao me aproximar, a vi me olhando com desconfiança pelo canto dos olhos, com o rosto baixo e a mão esquerda sobre a testa… Quando cheguei perto, ela se afastou de mim desviando o olhar.
Alguns minutos depois, enquanto recolhíamos as coisas para iniciar a caminhada novamente, eu a intimei a falar sobre os gritos que ouvimos a noite passada. Diante disso, ela pareceu meio que fora do ar, pensativa, até que caiu em si novamente se pôs a murmurar enquanto corava:

– Foi um erro… foi um erro… aquilo foi um terrível erro!

Desconcertada, ela saiu correndo para longe, carregando apenas seu chapéu e um cantil com a água de batatas. Fiquei muito confuso com a atitude da senhorita, em seguida, acompanhei apreensivo Aleguero, recolhendo as coisas, depois seguimos a caminhada.
Observei a bela Aura mais uns instantes e, vendo sua expressão, notei que não era como se estivesse preocupada com vozes do além-túmulo que nos atormentaram a noite, de forma alguma, parecia muito mais que ela estava terrivelmente envergonhada, como se houvesse feito algo que não devia… diante disto, volto a me questionar:

– Será que tudo aquilo, e me refiro a todos aqueles gritos e “fantasmas” que nos atacaram, será que tudo foi apenas um sonho?

Preciso pensar sobre isso, é melhor colocar as ideias no papel e tentar organizar meus pensamentos: após chegarmos ao deserto e caminharmos por um dia todo, a noite caiu trazendo uma tempestade de areia; às pressas, armamos uma barraca para nos abrigar, onde estive por toda a noite sozinho com Aura, enquanto Aleguero dormiu do lado de fora; esta manhã, em todas as vezes que falei com a senhorita, ela mal me olhou nos olhos; além disso, ela tem me parecido muito envergonhada com algo; e ainda tem as toneladas de piadas sexuais do nosso carregador… o que posso concluir de tudo isso?
Sou um homem casado e amo minha esposa, mas…

– Será que Aura e eu fizemos “algo”?
– Algo de que me arrependi… de que nós nos arrependemos?
– Será que, por isso, eu mesmo construí toda uma fantasia repleta de temores e maldições ao redor do caso?

Me parece mesmo com algo que aquele famoso psiquiatra que às vezes sai nos jornais, o tal do Sigmund Freud, diria. Segundo ele, tudo se resume a sexo e, é claro, que a culpa pelo que fizemos mexeu também com minha sanidade!

– Sem dúvida alguma, esta é a explicação, tem que ser!
– Será que minhas palavras estão fazendo algum sentido?

Nem sei mais por que continuo escrevendo isto, acho que apenas preciso me focar em algo, então, por hora, me concentrarei na busca que há a frente, me esforçarei para chegar até a pirâmide sem nenhuma distração, não mais compartilharei a barraca com a senhorita, para que não venha a cometer o mesmo e terrível engano!



A tarde a seguir foi tão normal quanto se podia ser, isto é, levando-se em conta que estávamos caminhando para dentro de um infernal deserto escaldante em busca de uma pirâmide lendário de ouro…
Vez ou outra, precisamos parar para que a delicada senhorita Aura descansasse por algum tempo, a sombra de alguma duna ou daquele chapéu estranho que ela carrega e, foi num destes descansos, em que Aleguero se deslocou para o alto de uma das dunas para buscar uma visão mais ampla do lugar, que perguntei a senhorita, de maneira absolutamente profissional e educada, é claro, sem sequer me aproximar muito para não incorrer em tentação novamente:

– O que sabe sobre este homem, senhorita Aura?
– Aleguero, acho que este era o nome dele, certo?

Ela riu em voz baixa – com sua linda e delicada voz – e fez menção de se aproximar, mas, vendo meu desconforto – pelo que também lamento tê-la feito perceber – apenas colocou sua mão esquerda ao lado da boca, como se tivesse a intenção de, ao mesmo tempo, amplificar seus sussurros e ocultá-los do homem acima de nós:

– Nada sei, a não ser sua nacionalidade: ele é florentino e foi indicado pelo meu avô como um guarda-costas para esta expedição.
– Meu avô disse se tratar de um homem honrado, embora ríspido, e que me protegeria de qualquer um, e eu consenti.
– Contudo, agora me recordo de que, logo que o avistou, um dos carregadores me contou que se tratava de um homem de fama perturbadora e me narrou uma história tão absurda que a julguei mera artimanha para reduzir o número de pessoas nesta viagem. Afinal, parte do pagamento que prometemos consistiria 0,001% dos lucros da expedição, divididos igualmente para todos da equipe; com menos integrantes, maior seria a parcela de cada um, foi essa a conclusão que cheguei.

Diante disso, questionei a senhorita sobre a tal história que havia ouvido sobre nosso companheiro e foi isso o que ela disse:

– O outro carregador me contou sobre uma expedição anterior, a um antigo templo asteca, situado na parte do Deserto Amazônico que se estende além das fronteiras do México, onde um burguês estava interessado numa estátua de uma deusa, ou uma virgem, ou o que quer que fosse; não me lembro ao certo agora. Porém, este homem que nos acompanha era o encarregado da segurança da equipe, visto que na região havia muitos contrabandistas.
– A expedição realmente alcançou o templo; ao todo eram quinze pessoas, e apenas um homem retornou de lá!
– Foram todos mortos de uma maneira tão absurdamente brutal que ninguém pôde explicar o fato; este homem, o nosso carregador e meu guarda-costas, foi o único sobrevivente. Ele foi apelidado de Alighieri, devido aos relatos de demônios e monstros que trouxe a tona; isso ocorreu há aproximadamente sete anos…

Passei o resto do dia ainda mais perdido do que estive durante a manhã, fiquei pensando nesta história até agora, enquanto escrevo estas palavras. Ainda assim, tão perturbadora quanto possa ter sido a história que a senhorita contou, meus próprios devaneios ainda se sobressaem em minha mente:

– Será mesmo que sonhei com todos aqueles gritos agourentos devido a culpa pelo meu pecado?
– Ou foi o próprio Alighiere que trouxe a tona todas as maldições dos nove círculos do inferno para esta nova expedição?

Me pergunto se ele planeja fazer o mesmo que fez naquela ocasião, mas, desta vez, conosco, isto é, com a senhorita Aura. Essa “estória” não serviu de nada, senão para atiçar ainda mais minha desconfiança. Aaquele homem: seu olhar, desde o início, me pareceu frio, como alguém que passou por muito sofrimento e, mesmo no escuro da noite e a luz de uma fraca fogueira, percebo, com receio, que ele leva as mãos ao cinturão e ao coldre, pelo menos, uma vez a cada minuto, conferindo se sua arma ainda está no lugar, se está pronta para ser usada…


É estranho, ainda é madrugada e já não tenho sono, creio ter sido aquele sonho que me despertou, acho que é melhor escrevê-lo também: sonhei com uma linda mulher, quase tão linda quanto a senhorita, seus cabelos eram de cor escarlate, como o sangue, e seus olhos, brilhantes como o Sol; sua pele era tão suave como a primavera, mas pálida como a morte; tinha um porte altivo e misterioso; estava vestida com roupas finas, com aparência europeia, embora fossem tremendamente antigas em seu modelo; tinha gestos delicados e uma maneira arrebatadora de caminhar. No sonho, ela vinha em minha direção, desde o alto de uma Pirâmide Dourada, até a relva verde em que estive caminhando ao seu encontro, sob grandes árvores antigas. Então ela falou comigo, me chamou pelo nome com a mais doce voz que já ouvi – ainda agora, a ouço, me contando sobre o lugar de onde viera, e que também me mostraria coisas incríveis, segredos escondidos além da umbra eterna, num lugar chamado Avalon…
Mas, o que realmente me causou arrepios de estranheza, não fora esse sonho tão vivido, e sim o que me disse Alighiere, quase imediatamente ao momento em que saí para respirar, após ter acordado:

– Esqueça isso doutor, você já teve sua chance na umbra da noite passada, mas o que fez com ela?
– Nada!!!
– Ficou assustado como um gatinho, se escondeu em sua barraca com a dona. Você não é homem suficiente, doutor, mas eu sou; não me deixo levar pelos resmungos do deserto quando estou diante de uma deusa!

Seu olhar me pareceu tão absurdamente maligno e, ao mesmo tempo, suplicante, que temi lhe responder, temi continuar encarando-o, eu apenas fingi não saber do que falava e tentei me afastar, o que não adiantou de muito, pois o homem ainda sussurrou:

– Amanhã, não fique entre nós ou eu o matarei também; a deusa será minha!!!

Eu soube imediatamente o que ele pretendia fazer com a senhorita, mas, naquele momento, me resignei, pois, percebi, em uma última olhada de canto de olho, sua mão pousada sobre a cintura, tateando a arma novamente. Não posso deixar que sua intenção se concretize, antes de chegarmos a pirâmide, terei de fazer alguma coisa, nem que seja matá-lo, preciso proteger Aura!







DIA III:

PERTURBATIO ANIMI


É o início da noite do terceiro dia. Já deveríamos ter chegado a Pirâmide Dourada e meu plano não funcionou!
Pelo contrário, perdemos muito tempo parando porque a senhorita queria esperar por Alighieri a sombra das dunas enquanto se protegia do calor. Felizmente, enquanto o observava se aproximar, tive uma ideia melhor para solucionar nosso problema…
Embora estejamos atrasados, não posso dizer que foi uma perda total, já que vimos o reflexo do Sol ao longe, na direção contrária a do verdadeiro astro, certamente é uma indicação de que estamos bem perto de nosso destino – como se não bastasse tudo o que já aconteceu desde que iniciamos esta caminhada; começo a suspeitar que realmente há algo de sobrenatural nesse deserto esquecido por Deus – durante as últimas horas da caminhada de hoje, as areias sob nossos pés me pareceram mais quentes do que antes, quero dizer, sei que este deserto é escaldante e é realmente possível se queimar os pés quando os afundamos por muito tempo na areia, motivo pelo qual, devemos caminhar com certa velocidade, mas, eu ainda não havia me queimado de fato, o que veio a acontecer nesta tarde. Tenho certeza de que senti um súbito aumento da temperatura de um instante para o outro, assim como senti as solas de meus pés sendo cozidas dentro de minhas botas!

– Será que este aumento no calor tem alguma relação com o reflexo da pirâmide que vimos durante a tarde?

Tenho certeza de que sim, pra dizer a verdade, estive pensando muito sobre isso e confesso que…


…confesso que ascender uma fogueira é bem mais difícil do que parece, como aquele bronco conseguia fazer isso tão rápido?
Maldito Alighieri. Ele simplesmente desapareceu, precisei interromper meus registros do dia e acender o fogo para cozinharmos as batatas com nosso último gole de água. Perdi mais de uma hora combatendo contra aquela pederneira, mas, finalmente consegui e estou de volta ao meu diário, registrando estas palavras. Deixe-me ver, onde eu estava?
Acho melhor começar de novo!



Durante as primeiras horas do dia estivemos subindo por morros de areia fervente, subindo morros, e descendo morros, e queimando os pés… Enquanto andávamos, eu observava que Alighiere, a todo momento, apertava seus olhos em direção da senhorita Aura e sorria. Aquilo me incomodava muito, principalmente quando recordada as palavras anteriores do canalha:

– “Amanhã, não fique entre nós ou eu o matarei também; a deusa será minha!!!”

Elas reverberaram inúmeras vezes em minha mente, e, a cada repetição, me parecia que alguma força sobrenatural o fazia as ouvir também, pois, o homem ameaçava a dama com seu olhar cobiçoso em resposta as minhas lembranças, em seguida, me encarava de maneira sádica e desafiadora.

– Maldito seja, como ele conseguia saber o que eu estava pensando?

Mais ou menos na virada do dia, as dunas ficaram ainda maiores e nós tivemos de literalmente escalá-las – desta vez, queimando as pontas dos dedos no processo – Aproveitei a oportunidade e procurei aumentar a distância entre ele, e Aura e eu, visto que ele me pareceu ter muita dificuldade em escalar carregando uma mochila tão pesada nas costas como todo o nosso equipamento. Mas, infelizmente, Aura insistia para que não o deixássemos para trás – o que era minha intenção – tamanha era sua bondade.
O Sol pouco a pouco se tornava ainda mais insuportável, e não era minha imaginação, realmente estava ficando mais quente, tremendamente mais quente, até para um deserto; o vento parecia queimar nossos rostos enquanto passava. Devo ter começado a alucinar porque, por um instante, o tempo me pareceu escurecer, como se uma sombra escura se lançasse sobre todos nós com intenção de nos engolir; parecia viva, como se respirasse e seu hálito era quente como o fogo; eu teria desmaiado se Aura não tivesse chamado por mim e posto sua mão sobre meu ombro.

– Eu estou bem, senhorita, foi apenas o calor que causou uma ligeira tontura – falei, em resposta a sua preocupação e, ao mesmo tempo, percebendo que a senhorita não via a nuvem de pura umbra que havia passado sobre nós.

– Deve tomar mais cuidado, professor – respondeu ela – vamos descansar por mais alguns minutos, assim também damos tempo para Alighieri nos alcançar.

Sem dúvida alguma, Aura era uma pessoa de bom coração, tanto que precisei me esforçar para atendê-la em seus pedidos. Voltei meus olhos em direção a Alighieri, apenas para me espantar com o que veria: ele estava ajoelhado, enterrado até as coxas na arei escaldante, e sua posição era como se estivesse orando, bem no alto de uma duna com sua mochila jogada ao seu lado; continuei o observando perplexo e me concentrei para tentar ouvi-lo nos momentos de calmaria dos ventos. Ele estava chamando por uma deusa, e era muito estranho, ele realmente havia falado sobre isso no dia anterior, embora eu tenha pensado que se referia a senhorita Aura, achei que a estava comparando a uma deusa, talvez por sua beleza. Não era este caso, porque, se, de fato, Alighieri falava de Aura, então por que ele não lhe virava o rosto, por que, em vez disso, olhava suplicante em direção ao coração do deserto?
Preciso proteger a senhorita Aura deste pagão!
Tenho certeza de que o calor sobrenatural me ajudará, é uma providência divina em meu auxílio; esperarei até que estejamos ambos sobre a mesma duna, a mais alta que encontrarmos, então eu o jogarei da encosta que me parecer mais movediça possível. E vendo estas queimaduras em meus pés, mesmo estando protegido por um coturno resistente, tenho certeza de que eu não gostaria de afundar meu rosto nesta areia infernal, e é com isso que estou contando!
Espero que ela seja capaz de arrancar até a carne dos ossos de Alighieri!!!
Enquanto eu planejava a execução deste plano, a voz do clamor de Alighieri, amplificada pelas formas côncavas das dunas, pareceu evocar em mim as lembranças de minha primeira alucinação e novamente o ar se encheu do mesmo clamor agourento, mas era diferente dessa vez, claramente havia uma voz de mulher, era bela, porém fria e sem vida. A voz me pareceu responder ao chamado daquele que se ajoelhara no alto da duna.
Olhei desesperado para Aura, mas ela parecia não ouvir nada, na verdade, creio que também estava presa em sua própria fantasia, causada por uma insolação, sem dúvida, pois, subitamente seu olhar me pareceu como que, cheio de orgulho de si mesma ao ver que dois pretendentes a disputavam, era como se estivesse possuída quando falou:

– “Vi como tendes vos encarado, porventura, disputais por minha causa, magister?”

– É claro que não, senhorita, nada disso – tentei argumentar – apenas estou preocupado com o que ele possa lhe fazer, o sujeito é um mau-caráter, seria bom que nos perdêssemos dele o quanto antes…

– “Não necessitais acusá-lo; escutei-vos noite passada. De maneira alguma, me interessaria um homem tão carrancudo e marcado pelo Sol como ele. Quando lá chegarmos, sua utilidade acabará, por outro lado, é em vós que devo concentrar minha atenção…”

– Fico lisonjeado, senhorita, sei que vem da mais alta classe, e é por isso que tem estado confusa sob este Sol intenso, no entanto, o que ocorreu entre nós foi apenas um erro, um terrível erro…

Alighieri parou de rezar e a senhorita Aura de poucos instantes, sombria e austera, desapareceu, dando lugar a uma outra senhorita absolutamente transtornada e histérica:

– Como assim, c-como assim? De que está falando? … um erro? Como assim um erro?
– O que pensa que ocorreu entre nó…

Suas palavras se perderam sem serem pronunciadas até o fim enquanto ela apontava boquiaberta para o horizonte: era como houvessem dois sois no céu, um bem atrás de nós, indo em direção ao poente, mas, ainda irradiando um calor infernal, e outro brilhando com intensidade equivalente por trás das grandes dunas, certamente este era o reflexo da Pirâmide Dourada, finalmente, lá estava ela, a poucos momentos de caminhada de nós. Entretanto, não poderíamos caminhar noite a dentro e só o que pudemos fazer foi observar seu brilho desaparecer aos poucos. O único consolo foi sentir a queda de temperatura que o por de “dois sois” nos proporcionou!



Enquanto escrevi este relato, sentado em frente a fogueira que logrei ascender, procurei Alighiere na escuridão, mas foi em vão. Tomara que tenha caído de uma duna e quebrado o pescoço e, se isso não aconteceu, amanhã, eu farei acontecer!







DIA IV:

IN ALBO









DIA V:

UMBRA ÆTERNA


A qualquer tolo que encontre o diário do almofadinha, peço-lhe desculpas porque não poderá continuar lendo seu relato, já que ele está morto, assim como meu maldito guarda-costas. Por Deus, foi um erro, foi um terrível erro ter vindo até aqui. Se alguém estiver mesmo lendo isso, por favor, diga ao meu avô que eu sinto muito por não ter voltado. Sei que a floresta não me deixará sair viva daqui. Foi ela, aquela cadela do inferno fez surgir esta floresta – esta maldita floresta que brotou desde a Pirâmide Negra!
Acho que ainda tenho algum tempo, afinal, eu mesma feri a desgraçada. Sei que também estou perdida, há crias do demônio ao meu derredor, então, ao menos, deixarei este relato as pressas, assim como também o meu aviso a qualquer um que seja idiota o bastante para encontrá-lo:



– SAIA DESTA FLORESTA!



Tudo começou, ou melhor, terminou, logo pela manhã do dia seguinte ao desaparecimento de Alighieri, aquele cão sarnento. O professor veio falar comigo – é outro imbecil – mas parecia imerso num tipo de feitiço, como se estivesse sendo dirigido por outra pessoa, estava totalmente insano, preso a ideia de matar Alighieri. Ele me chamou pelo nome de várias deusas diferentes, as quais, nunca ouvi falar e sequer me recordo dos nomes para registrar. Em dado momento, ele se fixou no nome de Calipso, me pergunto se enxergou em mim a mesma Calipso que outrora se apaixonara por Odisseu…

– “Foste vós mesma que me dissestes…
– “Calipso, ela me contou… há muitos boatos de que ele próprio matou a todos de sua equipe, não é assim?”
– “E vós, bela Náiade, deveríeis ter atentado às palavras de teus subordinados…”
– “Calipso… então, que esperais que eu faça com ela?”
– “E ele, quereis que eu o mate?”

Em seguida, se virou para o deserto e continuou falando suas besteiras com um tom ainda mais insano:

– “Não… não posso permanecer aqui com vós, domicella, da mesma forma não a deixarei sozinha com ele… Calipso, não me obrigais!”
– “Não com ele!”
– “E-ela… ela é minha, ela há de ser minha, MINHA CALIPSO!”
– “NECESSITO MATÁ-LO!”

O professor se dirigia a outra pessoa, ou demônio, e falava como um dândi de ocasião, claramente estava possuído. Parecia até com o próprio Alighieri, em algum sentido, um bruto, amante do sangue e não de mulheres, alguém perigoso. Como não havia mais o que pudesse ser feito naquele momento, continuei caminhando em direção ao brilho refulgente do monumento de ouro, mantendo grande distância do louco, com sorte, ambos os lunáticos se encontrariam no caminho e se matariam!



A pirâmide já me parecia bem próxima, e o professor estava fora da minha vista, foi quando ouvi sons de disparos, seguidos por pequenas explosões na areia quase atingindo meus pés. Imediatamente o professor veio correndo de alguma das dunas, agarrou meu braço e me conduziu para trás de outra duna. Fizemos silêncio, ao menos, ele parecia mais racional agora. Ouvimos Alighieri me chamando também de Calipso e proferindo obscenidades que faria com ela, comigo.

– Venha, Aleguero, eu o esperarei pacientemente, como convém a uma verdadeira dama!

Pouco a pouco, conforme as breves pausas dos ventos, sons de passos pesados que afundavam na areia se aproximavam. Quando estavam à pouca distância, tateei suavemente entre meus seios, por debaixo do vestido pensando em nosso encontro, mas, não cheguei a ter o prazer que tanto ansiava, antes notei que o doutor havia sumido do meu lado e, observando os rastros que haviam na areia, supus que saiu rastejando na tentativa de surpreender nosso algoz. Resolvi apenas esperar pra ver o que acontecia. Passaram-se poucos instantes até que os gritos de ambos se elevaram, estavam lutando pela posse de uma arma. Ouvi tiros e fiquei em silêncio numa expectativa.

– Os dois se mataram?
– Seria infinitamente mais simples dessa maneira.

Em resposta, ouvi a voz do professor:

– “CALIPSO, REVELAI-VOS!”
– “Eu o abati, resta apenas a domicella… então, enfim, poderemos permanecer juntos, pela eternidade.”
– “Serei vosso escravo, para sempre!”

No fim, aquele bronco foi completamente inútil: um guarda-costas incapaz de lidar com um professor almofadinha. Que tipo de imprestável é esse?
Houve um silêncio pesado e repentino, que foi quebrado pelo som de outro disparo, certamente o professor queria ir as forras. Até achei que a voz que balbuciava maldições pertencia a ele:

– “Será que não estais te precipitando em tomar a eternidade para si?”

Mas não era o doutor, e sim Alighiere quem falava agora:

– “N-nã… n-ão… que espécie de tolo arremessa a própria arma junto a um inimigo que, claramente, ainda respira?”
– “Não a tomarás para si, a deusa é minha… minha presa. Eu a matarei e colocarei fim a este feitiço!”

Parece me enganei quanto ao meu guarda-costas afinal. Os sons de tiros que se seguiram denunciaram que a loucura havia ido do professor para Alighiere, o ouvi puxando o gatilho repetidas vezes, mesmo após as balas terem acabado, e ele continuou fazendo-o enquanto me aproximava e falava com ele:

– Sempre julguei ser um exagero quando dizem que “alguns homens matam e morrem por mulheres.”

Calmamente, enquanto Alighiere se ocupava de atirar com balas imaginarias, coloquei minhas mãos sobre o decote do meu vestido. Com calma e delicadeza, puxei-o para baixo, apenas um pouco, de modo que Alighieri visivelmente reduziu o ritmo com o qual puxava o gatilho da arma descarregada e fez menção de que voltaria seus olhos para mim. No entanto, ele não pôde aproveitar a visão por mais do que um segundo ou dois, acho que sequer percebeu que saquei minha própria arma que trazia entre meus seios!

– “Me parece, que fora vossa deusa, Alighiere, quem ousou reivindicar vossa alma!”

Meu avô estava certo – “O caminho que conduz à Pirâmide, ó criança, exigirá o sangue dos insensatos!” – e já não havia o que eu pudesse fazer pelos tolos, senão pisar sobre eles e visitar a Pirâmide. Pus-me a fazer o restante da caminhada deixando-os para os abutres.



Quanto mais me aproximava, mais seu brilho me cegava, e tanto mais o calor refletido me fustigava. Era como me aproximar do próprio inferno – o desgraçado do Alighiere teria adorado isso, até me pareceu que ouvi sua risada, por um momento – Apenas quando cheguei, de fato, aos pés da pirâmide, é que me dei conta de sua magnitude: era semelhante a um prédio de dez ou doze andares, talvez. Das areias, erguia-se de forma majestosa, como um farol num mar de areia. Ao me aproximar, notei algo que me deixou chocada: a Pirâmide Dourada não era feita de ouro, muito menos era dourada, mas sim negra, de cor quase arroxeada e brilhante, e aquilo que a fazia reluzir dourada a distância, era o próprio Sol refletido pelas intermináveis camadas de vidro translúcido que a cobriam, tinha algum aspecto etéreo, como um caleidoscópio ou um prisma gigante. Sem dúvida, os ventos a encheram de areia durante éons, então, o Sol – que parecia ser muito mais quente aqui do que no resto do mundo – transformara aquelas camadas de areia numa grossa cobertura de vidro que refletia sua luz por quilômetros!


Caminhei ao redor do megálito, pelo lado que havia sombra, buscando uma entrada, mas não encontrei nada, o próprio reflexo do deserto nas camadas de vidro que dificultava identificar o que estava por baixo, ou talvez a entrada estivesse enterrada na areia. Por sorte, na terceira ou quarta lateral da pirâmide, nãos sei bem ao certo, encontrei uma escadaria perfeitamente esculpida na pedra escura, embora estivesse devidamente protegida pelo vidro, subindo desde sua base até o topo, certamente haveria uma entrada mais acima ou, no mínimo, eu teria uma bela vista de toda aquela maldita areia lá do alto.
Logo em meu primeiro passo, uma súbita sensação de perigo me acometeu, e não se tratava apenas do temor daquele vidro tremendamente escorregadio, não era isso, era mais como algo “externo a mim”, um temor que se aproximava como o espanto noturno. Senti-me tonta e quase me desequilibrei, havia algo maligno enterrado sob o vidro, um ser que pulsava e respirava!

– Será que devo mesmo galgar esta escada e encontrar o que quer que habite no seu cume?

Certamente o professor teria se questionado dessa forma, sempre com “todos aqueles serás” sobre tudo. Infelizmente, ele não poderia mais me ajudar – acho que subestimei sua utilidade!

– Novamente, não há mais o que possa ser feito, senão subir! – Então continuei, a cada passo em direção ao céu, menos calor meu corpo sentia, o que estava acontecendo?

Era como se a escada levasse, não para o topo, mas sim para uma dimensão estranha, onde algo ou alguém me esperava, o que, eu não saberia dizer. Por volta da metade da escalada, ouvi um som estranho, a principio não tinha ideia do que era, porém, conforme foi aproximando, vindo do lado oposto, escondido atrás da pirâmide, me dei conta que era o som de asas, de milhares de asas de pássaros, parecia uma massa de aves que logo passaria por cima da minha cabeça. Com o espanto, busquei me proteger, novamente correndo o risco de despencar da escada, mas nada veio até mim. Ergui minha cabeça em busca do que quer que fosse, na verdade, seriam os primeiros seres vivos em que colocaria os olhos naquele deserto, isto, além dos dois tolos que morreram aqui. O som era quase ensurdecedor, sem dúvida, haviam milhares de asas batendo acima de mim, mas, não importava o quanto eu firmasse os olhos e as procurasse, não havia nenhuma porcaria de pássaro no céu!
Me senti tonta novamente e, por isso, voltei os olhos para baixo em direção ao vidro que recobria os degraus, buscando me sentar na escadaria, quando o fiz, eu os vi, lá estavam eles – milhares deles – refletidos na camada de vidro da pirâmide. Haviam incontáveis sombras de animais voadores, embora eu não os pudesse identificar: não tinham bicos como aves, eram mais como morcegos, embora fossem cobertos de penas negras, me virei tão rápido como pude para cima novamente para procurar os donos de tais reflexos. Eles não estavam no céu!
De tanto virar o pescoço, perdi o equilíbrio e caí cerca de dez ou quinze degraus e, mesmo caindo, continuei fitando o céu, estava tão limpo e ainda mais vazio do que antes. Poderia ser que as criaturas que voavam em direção ao topo pertencessem a uma outra dimensão que não possa ser divisada pelos olhos nus?
Levou um tempo, mas os demônios se distanciaram, deixando apenas o som do vento para trás. Me levantei, sacudi a areia e continuei subindo degrau a degrau, com uma sensação de que não deveria continuar ainda mais presente, mas esta, era sobrepujada por meu desejo de encontrá-la. Por mais pesados que meus passos estivessem depois da queda, eles finalmente me levaram até o topo. Quando cheguei lá em cima, ELA estava lá, na imensa plataforma plana do cume da Pirâmide negra, me esperando, como meu avô disse que seria…

– “No topo da Pirâmide Negra que está localizada bem no centro do Deserto Amazônico, habita a deusa: uma mulher, se é que se poderia chamá-la de mulher, com longos cabelos encaracolados e ruivos como sangue dos mortos, que lhe caem sobre a testa e emanam vida e energia própria. Seu rosto aparenta jovialidade e ‘perfeição’; seus olhos são profundos e brilhantes e sua boca sorri com malícia.”
– “Suas vestes não eram incomuns na época, sobre a pele pálida, trajava um vestido com aspecto europeu antigo, que esvoaçava ao vento.”
– “Isso porém, nem era o mais chamativo sobre sua aparência, e sim o enorme par de asas de penas negras, com um leve reflexo arroxeado quando banhadas pelo Sol.”
– “Sem dúvida, era uma presença elegante e marcante, apesar de demoníaca e aterradora!”


– Agradeço-te pelos sacrifícios, criança – disse a deusa com voz formal, ainda que vazia e sem vida alguma – sem eles, não teria sido possível para mim, sair de Abadon!

Ainda que suas palavras fossem polidas e sua beleza grande, seus olhos demonstrava terrível velhice e maldade. Mas era impossível ignorar o desconforto de encará-la, havia algo em sua aparência que parecia falso, como se cada traço houvesse sido colocado ali intencionalmente, toda a sua figura não passava de uma mascara enganosa, um véu que ocultava a verdadeira natureza de anjo caído.
A súcubo desviou seu olhar de mim e se fixou aos pés da pirâmide, e eu, fiz o mesmo. Foi quando vi, incrédula: Alighiere e o professor. Seus corpos jaziam cobertos de sangue, um sangue que descia de seus pescoços e lhes banhavam por completo, parecia que suas gargantas lhe foram rasgadas de maneira brutal. Fui momentaneamente tomada pela náusea da visão, em seguida, fui arrebatada pelo silêncio da “mulher” e a encarei novamente. Como continuava em silêncio, apenas sorrindo malignamente, perguntei:

– Você é a “deusa” que eles têm chamado de Calipso? – e recordei-me de algo mais – e também “she-devil”…?
– Foi assim que te chamavam, meus carregadores covardes. Você é um demônio?

Sua expressão pareceu terna por um instante, como se estivesse tendo uma boa lembrança, então me respondeu:

– Há séculos que ninguém me chama assim – depois a criatura olhou ao redor, como se revirasse éons passados em sua mente – sempre preferi ser conhecida pelo título que recebi no Mundo Acima das Estrelas: Umbra Æterna – e virando-se de volta a mim, prosseguiu:
– Assim como aquela que me chamava de deusa três gerações atrás, tua avó, Aura, que se apaixonou pela humanidade, ambas sois demasiadamente humanas!
– Respondei-me criança: se sequer atendi o desejo daquela traidora, como pensaste que eu atenderia ao teu?
– Assim como ela, nem sois humana, nem sois deusa. Vossa existência é uma afronta ao que sou!
– Só mereceis ser consumida!

Assim que a mulher fechou seus lábios escuros, acima do deserto mais quente da Terra, o céu, que antes parecia até uma fornalha de azul infinito, escureceu-se sob o olhar de Umbra, como que, para protegê-la do Sol, o céu fora coberto por pesadas nuvens de chuva vindas do leste. Aquela “mulher” fantasmagórica bateu suas asas negras com tamanha força que reverberou com os trovões, ela lançou-se sobre mim com tamanha velocidade, que sequer notei o instante em que atingimos a areia, eu apenas senti a dor do impacto e algo se quebrando em meu corpo. Desde o topo da pirâmide até o chão, a vadia me carregou pelos ares, depois fechou suas mãos em meu pescoço e o ar começou a me faltar. Enquanto olhava no fundo dos meus olhos, senti seu desejo de arrancar minha alma pelas orbitas do meu crânio. A criatura sorria com evidente e macabro prazer, como se fosse me devorar. Por detrás de um sorriso sádico, vi seus dentes, antes brancos e perfeitos, tornando-se extremamente pontiagudos, afiados e escuros, como se fossem feitos especialmente para rasgar a jugular humana e tomar-lhes a alma das veias – isso é real?

A dor que sinto, mesmo agora, me diz que sim…

– Existe mesmo um ser assim, um ser que tem vagado por séculos, não só neste mundo, mas também em outros, um ser que tem se alimentado dos homens?

Mesmo perdendo as forças, meu instinto ainda não havia desaparecido, então tentei me soltar de suas garras, mas minha resistência foi inútil – sua força era sobre-humana – Tateei desesperadamente pelo meu corpo, tentando colocar as mãos dentro de meu vestido, na verdade, o que eu buscava era a arma que sempre trazia junto ao coração, para que, com ela, pudesse disparar contra o dela. Contudo, ao perceber meus movimentos, a súcubo gargalhou ensandecida e exclamou:

– Ora, mas o que é isto?

– A morte lhe excita criança? – e soltou um suspiro de profunda excitação antes de prosseguir – talvez sejamos parentes afinal!

Ela aproximou seu rosto do meu, quase roçando minha pele com seus dentes:

– Serás outro sacrifício a minha beleza, no entanto, hei de conceder-te o que desejas em teus últimos instantes.

Umbra afastou seu rosto, cerrou os olhos e ergueu a face para o céu, deleitando-se em luxuria com meu sofrimento. Ela agarrou uma de minhas mãos e a conduziu ao seu próprio corpo.

– Cadela do inferno, não permitirei que me use para profanar as leis de Deus! – gritei, enquanto os suspiros da criatura eram agora tão altos que abafaram os de meus esforços.

Usando meu ultimo folego alcancei minha arma. Com os olhos fechados e seu rosto voltado aos céus, a desgraçada sequer se importou quando posicionei o cano do revolver entre seus seios. Puxei o gatilho repetidamente: seis, sete, oito disparos. A cada um deles, a criatura afrouxava suas garras de meu pescoço e gritava como uma cadela quando castigada por seu dono. E caiu de costas no chão, arfando e grunhindo.
Levantei-me cambaleando, mas com determinação, meu corpo tremia, os pulmões ardiam, e a visão ameaçava me abandonar, ainda assim, corri. Os corpos de Alighiere e do professor estavam em meu caminho, de modo que, me joguei sobre o corpo de meu antigo guarda-costas e procurei em suas roupas até encontrar sua arma. Fiz menção de mi virar e atirar novamente no demônio, entretanto, os gritos que antes pareciam de um animal ferido, deram lugar a um terrível berro de dor, gutural e etéreo, que fez minha alma estremecer. Um terror intenso tomou conta de mim e quase me paralisou, foi com dificuldade que me arrastei para longe da pirâmide com lágrimas de desespero queimando pelo meu rosto – ainda ouço aquele grito em minha mente enquanto escrevo estas palavras – Deve ser assim que soam os prantos do inferno.
Não ousei olhar para trás enquanto rastejava para longe, mas a ouvi se apoiando na beirada do monumento, depois vi um breve reflexo dourado refletido no chão e escutei o som de algum líquido caindo da besta – um gotejar constante – sem dúvida, a cadela sangrava como qualquer animal.
Os berros cessaram instantaneamente e um som rastejante se fez presente. Meu temor instantaneamente diminuiu, como se sua fonte se afastasse, então olhei para trás. A súcubo não estava mais ali, certamente, escondeu-se dentro da pirâmide para se recuperar. No local onde havia se reerguido após meus disparos, havia apenas uma poça de sangue, tão grosso e dourado como o ouro – ícor – esta visão me fascinou por um instante, me fazendo até esquecer do demônio. Havia um brilho intenso e frio, como o da Lua. Depois, vi pequenos círculos concêntricos se formando na superfície do líquido e, nos instantes seguintes, pequenos ramos negros e espinhosos surgiram da poça dourada, como se houvesse uma certa vida deturpada naquele “ouro”, uma vida que fora tomada a força de outros seres e que agora, ao ser liberta daquela prisão maligna, buscava respirar novamente e crescer. Em resposta ao crescimento, a chuva caiu pesada e alimentou o que agora eram cipós negros e retorcidos. Estes continuaram crescendo e se espalharam pelo chão, por sobre piramide e sob os meus meus pés com a velocidade de uma locomotiva.
Um grande estrondo que se seguiu roubou minha audição por algumas horas, isso foi quando imensas árvores cresceram até os céus, tocaram as nuvens, consumiram-nas imediatamente e envelheceram diante dos meus olhos. Tudo se tornou escuro, como se a umbra da pirâmide tomasse todo o lugar.
Uma floresta tão imponente, velha e extensa como jamais se vira no mundo, simplesmente surgiu onde antes havia apenas um deserto. E a qualquer um que se perguntasse, diria que sempre estivera ali, que ela atravessou os éons e abrigou incontáveis gerações de animais e povos primitivos. Mas esta não é a verdade. Ela simplesmente não é deste mundo. É um habitat de demônios, um condutor desde a quarta dimensão até a Terra!
Meu único consolo é a certeza de que, muito mais do que a mim, esta floresta deseja consumir aquele demônio imundo, assim como ela consumiu a vida que agora sustenta estes galhos. Contudo, não acho que ela sairá da pirâmide agora, ao menos, não sem que novas vítimas a encontrem e se tornem alimento, recuperando sua força e vigor.
Não tenho esperança de sair daqui com vida, porque, pouco a pouco, sinto que atenção das sombras ao meu redor perdem o interesse em Umbra e se voltam a mim, ao menos, posso deixar este aviso e chamar-lhe de tolo por ter adentrado esta floresta e encontrado este diário. A não ser que deseje ser alimento para os demônios:



– SAIA DESTA FLORESTA!





NATIVITAS SIVÆ:
FIM?

Ainda não…

Imagens feitas com ajuda do ChatGPT, na verdade, foi bem divertido jogar os trechos do conto nele e ver o que saía…

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