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CRÔNICAS DO CAVALEIRO DAS BATATAS


CAPÍTULO I – FUGINDO DO VELHO MUNDO.

– A Ordem caiu. Fomos perseguidos e mortos apenas por termos cumprido nosso trabalho de guardiães! 

– Não importa o que pensam, nosso dever sagrado é com a Igreja e com a manutenção da justiça. 

Dois “Cavaleiros Pobres” conversavam na proa de um navio observando o oceano por onde viajavam a tanto tempo que suas cotas de malha já começavam a enferrujar. Uma Cruz Vermelha era muito visível no peito de um deles, enquanto que no outro, a mesma se encontrava oculta debaixo de uma túnica improvisada. A falta de armaduras sobre a cota de malha eram a prova de sua renúncia as posses para que pudessem dedicar suas vidas a Deus. 

– A igreja e a Ordem não se importam conosco. É por isto que não lhe foi permitido usar abertamente nossa cruz, tampouco recebeste um nome. 
– Foste criado apenas para servires a teu propósito, um cozinheiro, alguém dispensável que prepara as batatas! 
– E por isso rumamos ao Novo Mundo, para refazer a ordem, maior, melhor e mais poderosa. Persistiremos por gerações e um dia retornaremos e queimaremos todos que nos usaram! 

Indignado com as palavras, aquele cavaleiro que jamais fora consagrado, respondeu: 

– Isto é uma traição de nossos votos, não temos autonomia tampouco poder para ir contra a Igreja. O que encontraremos numa terra de selvagens que mudaria este quadro? 

Ele levou as mãos a sua cintura e tateou em busca de algo óbvio, mas recordou que sua espada, a qual lhe fora permitida carregar apenas nos momentos de maior necessidade, quando cada soldado contava, não estava ali. Em seguida olhou para seu superior e para si mesmo, o “Cavaleiro das Batatas” era pequeno diante dele e fraco, muito mais baixo que seu superior, ainda que não fosse de constituição fraca, sua pele morena indicava que a maior parte de seus deveres eram desempenhados debaixo do Sol, não treinando, mas cultivando, colhendo e cozinhando para o resto da Ordem. Então seu superior lhe disse: 

– Se queres me enfrentar, lhe arranjarei uma faca de cozinha com todo prazer, mas seria um desperdício de tua vida, pois precisaremos de um cozinheiro no Novo Mundo! 

A noite caía a frente do navio e não importava o quanto o pequeno cozinheiro tremesse de raiva, nada mudaria o fato de que temia a morte e preferia estar vivo a morrer pelas mãos daquele homem e encarar seu Criador. Ele pensou que, por hora, seria melhor continuar a seguir as ordens, quem sabe na terra para a qual rumavam uma chance de escapar se apresentasse, depois disso viveria na floresta sozinho e como sempre fizera antes, cultivaria a própria comida.
Bem, assim ele pensou…

CAPÍTULO II – EM BUSCA DE BATATAS.

A viagem durou exatos trinta dias, e, por sorte, o mar esteve calmo todo o tempo, pois escolheram uma época do ano favorável a navegação; e finalmente desembarcaram, vários botes fizeram muitas e muitas viagens desde o navio em alto-mar até as praias de areia dourada, mas, felizmente, ou infelizmente, dependendo de seu ponto de vista, o Cavaleiro das Batatas não precisou participar do desembarque de o equivalente a uma cidade pequena, entre equipamentos e armas de dentro do navio, não, ele foi designado para se embrenhar dentro da floresta, que fazia divisa com a praia, a procura de nada menos do que batatas!
Ainda que seu temor fosse grande, por estar se aventurando na mata totalmente sozinho, a diversidade de plantas e o canto dos pássaros o fez se esquecer do temor, ele até poderia jurar que vira as folhas de uma árvore falar com voz humana em uma língua desconhecida, em seguida abrir asas e voar.
O cavaleiro levou mais tempo do que gostaria até que encontrasse tubérculos o suficiente para a ordem, e quando finalmente conseguiu, ele retornou a praia onde havia um acampamento completo e uma cozinha improvisada o esperando.
Tudo parecia calmo e o céu estava profundamente azul sobre sua cabeça, havia um oceano límpido brilhando com o Sol a sua frente enquanto cozinhava, até que notou algo curioso: Todos os soldados estavam em alerta, portando suas espadas e vestindo suas armaduras. 

– O que aconteces aqui?
– Esperais, por ventura, um ataque? 

Perguntou ele ao seu companheiro mais próximo, mas este nada lhe respondeu; a noite, se passou em alerta, o rapaz temia o desconhecido, porém, nada aconteceu, e teria sido uma noite agradável, não fosse pelo temor.
No dia seguinte, o capitão em pessoa ordenou que seu cozinheiro fosse a procura do que cozinhar mais uma vez. 

– Por qual razão o capitão tens me mandado desempenhar tal tarefa dia após dia?
– Em nosso acampamento há caixas e mais caixas de mantimentos, será que estão querendo fazer com que tudo dure além do que se espera? 

– Seu inútil – respondeu ele – não cabe a vós questionar uma ordem, apenas obedeça tão logo lhe são conferidas! 

Após ser repreendido, o Cavaleiro das Batatas se embreou rapidamente na floresta. E levou mais de uma hora procurando, mas não encontrou nada, e em todo esse tempo, ele esteve incomodado com sons estranhos que vinham da direção do acampamento, barulhos de choques de pedras ou troncos contra metal, vozes exaltadas, e o latido dos cães trazidos com a Ordem, mas ele não se atreveu a retornar até que tivesse encontrado o que procurava e só então, retornou… apenas para se surpreender com a visão de corpos dos nobres e de selvagens caídos ao chão sem vida, e uma batalhe ainda em curso. 

– Afinal, o que se passa? 

E saltando sobre o pobre cozinheiro, surgiu de algum lugar, um selvagem, estava nu e tinha pele morena, portava uma espécie de clava de madeira; o índio o agitou sobre sua cabeça e ameaçou um golpe; mas o sangue voou imediatamente sobre a face do cavaleiro e a ponta de uma lâmina surgiu no peito do selvagem, acompanhando a visão da lâmina, desde o ferimento agonizante, até o cabo e em seguida até a mão que a segurava, lá estava ele, Isaac, o líder da ordem, que deu uma pequena risada, em seguida encheu os pulmões e gritou algumas palavras para os homens, mas estas eram estranhas, estava falando em uma língua que o Cavaleiro das Batatas jamais houvera escutado.
E como que se o entendessem, os selvagens se retiraram para à floresta rapidamente, exceto por uns poucos que haviam sido capturados pelos Templários.
A noite se pôde ouvir os gritos dos Índios ao serem interrogados, entre eles havia uma mulher, a voz dela cortou o coração do rapaz, mas o que era mais estranho, era ver todos os membros da ordem falando a língua dos nativos menos ele…

CAPÍTULO III – A DEUSA.

Dormir era simplesmente impossível, os gritos dos cativos ocultavam quaisquer sons noturnos, a floresta parecia muda diante de todo aquele clamor, e o que mais incomodava o pobre cozinheiro, eram os gritos da bela mulher selvagem. Ele a viu de relance enquanto tentava se aproximar da tenda dos cativos, passo a passo ele avançou sob as luzes dos archotes, estranhando os cavaleiros que passavam por ele falando numa língua desconhecida. Subitamente, o estandarte de Isaac surgiu diante dos passos do rapaz e um golpe lhe atingiu violentamente pelas costas. No chão, ele ouviu a voz do segundo em comando questionando:

– Que queres aqui cozinheiro?
– Não há nenhuma batata neste local!

– Ahnn… não é nada senhor, vi alguns cogumelos comestíveis por aqui, mais cedo, pensei em ver se não foram pisoteados durante as… bem, durante as altercações…

O cavaleiro o olhou com desprezo e balbuciou:

– Foi por conta de pessoas inúteis como tu, que nosso líder deixou a Ordem…

E golpeou novamente o pobre cozinheiro no chão, dizendo:

– Não te preocupas com a eternidade?
– Apenas a comida tem valor pra ti, servo?

Ao menos ele fora deixado sozinho diante da entrada da tenda e dos olhos escuros da garota selvagem, que estava acorrentada.
E mesmo agora, deitado ao chão recordando os eventos do dia no escuro, a visão da prisioneira havia ficado impressa nos olhos do cozinheiro.

– Quem era ela?
– O que quer a Ordem nesta terra de selvagens?

O silêncio pouco a pouco foi crescendo e suplantando os lamentos, afinal, já era bem tarde e todos precisavam dormir e, ainda que houvesse guardas em seus postos, afinal, poderiam ser atacados pelos selvagens novamente durante a noite, estes apenas patrulhavam as bordas do acampamento sem mais torturar os prisioneiros, aliás, sequer os cativos eram vigiados, já que permaneciam acorrentados em estacas e agora tinham um pouco de descanso.
O cozinheiro olhou para todos os lados em busca de sinais de vida e, fora outros cavaleiros de baixa patente que dormiam sobre a grama, a pouca distância, não viu ninguém. Então levantou-se vagarosamente para que não fizesse ruido algum, sequer colocou sua armadura senão, apenas a cota de malha sobre as roupas de couro, mas não esqueceu de apanhar seu cutelo de confiança e de pendurá-lo na parte de trás do cinto.
Um passo cauteloso de cada vez, o cavaleiro se aproximou da tenda dos prisioneiros, até finalmente alcançá-la. La estava ela: tinha pele escura como a noite sem luar e cabelos incrivelmente lisos, como se instrumento algum jamais os houvessem tocado. Estava vestida com trajes esfarrapados e correntes nos braços e pernas, era linda, a mais linda mulher que seus olhos já haviam se fixado, mesmo coberta de cortes e arranhões. O cavaleiro inferior se aproximou um pouco e a observou por um instante, em seguida, se assustou quando um leve tremor passou pelos olhos cerrados da selvagem. Lentamente ela os abriu, encarou o cozinheiro e este, quase saltou para trás quando a ouviu dizer, não no idioma estranho dos selvagens, mas em seu próprio alto idioma:

– P-por favor… por favor cavaleiro das batatas… m-me ajude… me ajude cavaleiro, não deixe que seja ELE, aquele homem, a chegar até a deusa…

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